In memoriam
(Texto produzido a propósito do desafio de Abril da Fábrica das Letras, com o tema Abismo)
Foi andando cada vez mais devagar, até parar o carro junto ao murete de protecção da ponte. Abriu a porta e acercou-se da balaustrada, ainda sem a certeza do que queria ou não fazer. As águas cor de tinta-da-China, correndo numa forte torrente de princípio de Primavera, lá em baixo, chamavam-no, como um apelo à liberdade. Sentia a atracção do abismo, daquele abismo.
Ninguém se desfaz da vida como de uma camisa velha. Mas ele olhava à volta, com os olhos da alma, e não encontrava outra saída. Tinha cinquenta anos e uma vida de procura. Não é simples “fazer a vida”. Os pais, os amigos diziam-lhe “Tens de fazer a tua vida”. Isso significava o quê? Desistir da música, dos sonhos? Arranjar um emprego a fazer, todos os dias, coisas de que não gostava? Sim, tinha-se convencido de que era essa a solução para “fazer a sua vida”. Tinha feito um curso superior, mas não tinha encontrado um emprego e, afinal, era da música que tinha chegado a oportunidade: dar aulas de Música. Primeiro, ficara entusiasmado. Mas depressa a realidade abafara o entusiasmo. Os alunos eram mal educados e cruéis. Especialmente, aqueles, daquela turma!
Voltou a olhar o abismo que se abria para a torrente de água, e que o chamava lá do fundo. Quantas vezes fizera queixa dos alunos daquela turma? Já perdera a conta, já deixara também de o fazer. Mas eram pedidos de socorro, como quem diz: “Por favor, ajudem-me, não estou a ser capaz de lidar com isto! Tenho cinquenta anos, mas sou só um professor contratado, um homem à beira do desespero! Não consigo um emprego estável, não sei fazer a minha vida! Sei que sou tímido, às vezes não sei lidar bem com as situações. Mas mereço algum respeito, não? Sei que posso ensinar música, é disso que eu gosto. Não gosto que não me respeitem, que não se calem quando eu estou a explicar qualquer coisa, que gozem com o que eu digo, com o que eu visto. Não gosto que me chamem parvo, não gosto que me chamem cão!”
As lembranças fizeram-no trepar pela balaustrada. Não, não era um cão. Talvez fosse diferente, mas não era um cão e não ia permitir que o tratassem assim. Antes morrer! Lembrou-se dos colegas, demasiado atarefados com os seus próprios problemas. Alguns deles, demasiado preocupados em mostrar que eram excelentes, que conseguiam controlar os alunos e dar as matérias e fazer até o pino, se fosse preciso, porque a avaliação estava aí! Como perder tempo a apoiar um colega?
Agarrou-se com força à balaustrada e pensou nas alternativas. Será que amanhã conseguia entrar na escola e voltar a enfrentar tudo outra vez? E devagarinho, como quem se abandona no colo da mãe, deixou-se cair no abismo das águas.
Este texto, ficcionado, é uma singela homenagem ao meu colega Luis, da Escola de Fitares, que se suicidou atirando-se da Ponte 25 de Abril, no passado mês de Fevereiro.
Lindo e emocionante ainda mais sabendo da dedicatória. Bela participação,Teresa!beijos,linda páscoa!chica
ResponderEliminarUma bonita homenagem (infelizmente).
ResponderEliminarTeresa sua história estremece o meu ser... "Fazer a vida" , é para pensar! Eliete
ResponderEliminarBelo texto, forte e profundo.
ResponderEliminarA desilusão é a arma de muitos.
Sinto pelo seu amigo.
Meus pêsames.
Ana
Com o teu texto, senti o que o Luis provavelmente sentia. A tua sensibilidade, assim o transmitiu.
ResponderEliminarO Luis tem(é) um pedaço de cada um de "nós" que anda por cá no dia a dia...
El Matador
ResponderEliminarUma homenagem póstuma é sempre amarga, mas às vezes é a única coisa que se pode fazer.
Bjs
Chica
ResponderEliminarObrigada, foi um texto dorido.
Bjs e Boa Páscoa.
Eliete
ResponderEliminarSabe que esta expressão "fazer a vida" sempre me fez confusão, sempre achei que era uma tarefa bem difícil.
Bjs e obrigada pela sua presença. Volte sempre.
Ana Cristina
ResponderEliminarNão era meu amigo, mas era meu colega de profissão. Todos sentimos a sua morte e os problemas que ele enfrentou.
Bjs. Volte sempre.
MagyMay
ResponderEliminarNão sei se era assim que ele o sentia, mas foi o que eu fui sentindo, à medida que fui lendo pedaços de coisas, nos jornais, na net. Sim, de certa forma, o Luis é um pedaço de cada um de nós.
Bjs. Boa Páscoa para ti.
Teresa, só podemos imaginar o desespero que se passa na cabeça de alguém para desistir assim da vida. Emocionante a tua dedicatória e que esse teu amigo tenha encontrado, finalmente, o descanso que procurava.
ResponderEliminarBj e boa pascoa.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCatsone
ResponderEliminarÉ verdade, só podemos conjecturar, por isso, eu escrevi que o texto era ficcionado a partir dos indícios que eu fui recolhendo. Mas o desespero, só ele o poderia descrever.
Bjs. Boa Páscoa.
Sinto por você, querida. Um abração!
ResponderEliminarSueli
ResponderEliminarObrigada.
Bjs para você e uma boa Páscoa.
Olá!
ResponderEliminarQuantos "Luises", não andarão por aí?
Alguns escondiidos, atrás de anti-depressivos, por forma a dar continuidade a uma prifissão, que tanto investiram de si. Contudo, sentem-se completamente defraudados e desiludidos. Abandonados, pela tutela, pelo sistema, pelos colegas, pois a avaliação é o que conta, maltratados, por alunos, vaíados por vezes pelos encarregados de educação e por fim entregues à sua sorte.
Por vezes, o desespero é tão grande, que termina com um fim trágico.
Finalmente, o seu texto é actual, pertinente e presta homenagem a todos os "Luises" de uma classe docente.
Uma Páscoa Feliz!
Bj
Maré Alta
Amiga, li o teu texto arrepiada! como tu dizes andamos tão atarefados que nem um segundo nos sobra para apoiar um colega! no que nos estamos a transformar? quantas vezes vamos de coração apertadinho para enfrentar a turma A ou B? como nós entendemos o Luís...linda a tua homenagem.
ResponderEliminarUm grande beijo
Teresa
ResponderEliminarHomenagem bonita e sentida, emocionou-me .
Um professor! e eu que tenho o maior carinho pelos mestres senti quando à epoca li a respeito.
Quantas vezes perdemos alguém por faltar bom senso ou aquela intuição do que se passa no íntimo de alguém .Faltou isso , talvez, pra salvar a vida do professor Luis.
Bom estarmos alertas, não é Teresa?
Desejo uma Pascoa abençoada junto da familia.
Que as celebraçoes sejam motivos pra renovaççao da mente e das esperanças num mundo mais harmonioso.
meus abraços
PARABÉNS AMIGA, PELO TEXTO.
ResponderEliminarAS VEZES AS REALIDADES SÃO TRISTES DEMAIS. NOSSOS ABISMOS,NOSOS MEDOS, NOS LEVAM A COMETER COISAS ASSIM..NOS LEVAM PARA UM GRANDE ABISMO..
TAMBÉM ESTOU PARTICIPANDO COMO BLOG INTERAÇÃO DE AMIGOS.
VOU TE ESPERAR PARA COMPARTILÇHAR.
http : / / sandrarandrade7.blo gspot.com / 2010 / 04 / coletiva - abismo - nossos - medos.html
FELIZ PÁSCOA.
CARINHOSAMENTE,
SANDRA
Acabei duplicando a lista de seguidores.
ResponderEliminarNossa!!!
Achei que não estava. E lá estava eu...rsrsrsrsr
Que homenagem linda, Teresa. Arrepiou! Muito!
ResponderEliminarMas é preciso homenagear estes 'heróis' em vida, ouvindo-os e dando-lhes a mão. Que o seu acto de desespero não tenha sido em vão. Que o seu abismo para chame mais ninguém a mergulhar nele.
Páscoa Feliz!
Beijinhos :)
Essa doeu cá bem no fundo, Teresa.
ResponderEliminarNão consigo dizer mais nada.
Bj
Maré Alta
ResponderEliminarÉ verdade, quantos Luises andarão por aí, pelas Salas de Professores, e nós tão ocupados que não conseguimos perceber os problemos, ouvir os pedidos de ajuda, fazer qualquer coisa?
É uma boa reflexão.
Bjs e boa Páscoa.
Lilá(s)
ResponderEliminarAcho que temos de ser sinceros e humildes e admitir que, muitas vezes, os alunos nos fazem passar as passas do Algarve e que entendemos o Luis. Temos de ser capazes de ser solidários.
Bjs e boa Páscoa.
Lis
ResponderEliminarTem razão, é importante estarmos alerta. Quem sabe não podemos salver uma vida?
Bjs e boa Páscoa.
Sandra
ResponderEliminarAs nossas realidades, às vezes, são os próprios abismos, é verdade.
Bjs e boa Páscoa.
Helga
ResponderEliminarJá pensamos isso no caso do Leandro, lembras-te? Que sirva para alguma coisa!
Bjs e boa Páscoa.
Ana
ResponderEliminarNão precisas de dizer nada. Eu sei que tu também sentes pelo Luis.
Bjs e boa Páscoa.
Oi Teresa
ResponderEliminarPassando pra deixar meu abraço do domingo de Pascoa.
Pra voce vai chegando a noite e aqui iniciamos a tarde de um domingo nublado e bom, há calor mas bem mais ameno, sem o sol.
Ah, lá no post do Júnior houve uma troca de nomes, só isso,já ficou tudo certinho agora,ok?
Também nao sei o que pode estar acontecendo com seus recados , vez ou outra quando clico em comentários abre avisando que tem 1 , aí eu clico pra ler e desaparece ( não é com frequencia isso,mas já aconteceu) nao dá nem pra ver de quem , fico estressada, mas que fazer se esse sr.blogger endoida de vem em quando. Desculpe e se continuar acontecendo vou precisar eliminar a moderação.
Boa semama ,abraços
Teresa,
ResponderEliminarEu tinha lido uma pequena nota num site jornalístico aqui no Brasil. Mas não entendia o real motivo do suicídio do nosso colega.
Lamentável. Dizer que dificuldades existem em todas as profissões é uma forma de camuflar o problema. Pois é, esse professor foi vítima desse desdém. Ele alertou de todas as formas possíveis a perseguição que sofria. Mas, certamente, a direção da escola via tal perseguição como algo normal.
Solidarizo-me com a família do professor e com os colegas portugueses, em especial você Teresa, que fez essa homenagem tão bonita.
Beijos e uma ótima semana pra você.
Lis
ResponderEliminarNão elimines a moderação, às vezes são problemas temporários, já me aconteceu comentários irem parar ao lixo porque o computador os considera spam, vá-se lá saber porquê!
Já fui ver, já percebi o que aconteceu no blogue do Junior.
Bjs
Valdeir
ResponderEliminarÉ mesmo lamentável. Creio que ele pediu ajuda, como foi capaz. Há pessoas, aqui, que dizem que ele era psicologicamente frágil; mais uma razão para o apoiarem.
Obrigada pela solidariedade. Bjs
Uma linda homenagem... deixaste-me sem palavras...
ResponderEliminarÉ lamentável ao ponto a que este país chegou... :(
Beijinhos
Rita
Rita
ResponderEliminarObrigada, estas situações devem, pelo menos, servir para reflectirmos sobre o percurso que seguimos.
Beijinhos e bem vinda a este espaço de conversas.
É tão triste que estas situações continuem a acontecer... fico sem palavras, sinceramente. O que podemos fazer? Quando uma pessoas comete a derradeira fuga... o que fazemos com aqueles que a levaram a isso? É desesperante...
ResponderEliminarSusana
ResponderEliminarTens razão, temos de reflectir. O que podemos fazer para ajudar quem está nesta situação?
Bjs
Eu não consigo sequer imaginar o desespero de uma pessoa que toma essa decisão. É demasiado triste...
ResponderEliminarÉ frustrante pensar onde o desepero pode levar uma pessoa. O desepero, a solidão e principalmente o egoismo que todos veneramos e que nos impede de ver com olhos de ver, os outros ali ao nosso lado.
ResponderEliminarUm beijo Teresa
Su
ResponderEliminarTens razão, claro, não é possível sentir esse desespero. Eu apenas tentei traduzi-lo.
Bjs
Mel
ResponderEliminarQuando estas coisas acontecem, de certa maneira, somos todos responsáveis, não é?
Bjs
Não se pode acrescentar nada, nem o senhor saberá que alguém lhe fez esta homenagem. Fica a mensagem que servirá para outros que como ele ponderem a possibilidade. Haverá sempre solução.
ResponderEliminarJohnny
ResponderEliminarHá sempre solução, quando estamos disponíveis para a procurar, não é?
As homenagens póstumas são sempre inúteis. Só nos fazem sentir um pouco melhor.
Bjs
Teresa
ResponderEliminarestou a ler os posts todos dos muitos blogs que tenho no Google Reader e não tenho feito comentários, pois então nunca mais acabava; mas abro de quando em vez uma excepção e este é um desses casos.
Tão bonita e tão triste esta tua homenagem!!!
Beijinho.