Um dia...
- Anda daí, Pinóquio!
O cão levantou-se e encaminhou-se para a porta, como quem já sabe ao que vai. O homem olhou para o cão e riu-se; e o bicho levantou o focinho para o homem, a boca aberta num esgar que podia ser também um sorriso. Já estava velhote, o Pinóquio! O nome tinha-lhe sido dado pelo neto do homem, quando andava a aprender a juntar letras e palavras, e lia e relia, entusiasmado, as aventuras do boneco de madeira. Na época, o cão era um cachorrinho castanho-claro, muito vivo e engraçado, e o nome parecia assentar-lhe bem. Agora, o neto do homem era rapaz feito e vivia outras aventuras com as namoradas que levava lá a casa. E o Pinóquio começava a mostrar os problemas da idade, como as pessoas!
O homem abriu a porta, agarrou num casaco de malha, não fosse a tarde refrescar, e saiu ligeiro, acompanhado pelo cão. Tinha decidido que hoje à tarde ia visitar o Júlio. Não era longe, vinte minutos a andar com calma, sem correrias, e quando lá chegasse iam os dois beber uma cervejinha fresca e descansar as pernas. Iam falar dos bons tempos que tinham passado juntos, iam rir a bom rir ao recordar algumas aventuras do tempo da escola e depois iam abanar a cabeça tristemente, a lembrar um ou outro companheiro desse tempo que, entretanto, já tinha partido deste mundo. Acabavam sempre assim. Já lá não ia há algum tempo, mas sabia que acabavam sempre assim, hoje não havia razão para ser diferente.
O homem e o cão caminhavam com passos seguros, cadenciados, pareciam dois jovens outra vez. A tarde estava boa, um solzinho a aquecer o coração, uma brisa do rio a temperar o sol.
Quando chegou ao jardim, as pernas começavam a pesar-lhe. Resolveu sentar-se no banco, o Pinóquio sentou-se ao lado, sempre descansava também. Tinham tempo, a casa do Júlio era perto e a tarde estava boa, convidava ao passeio.
Olhou para o rio e para as gaivotas, poisadas com ar vigilante nos candeeiros. Quando era rapaz, costumava mergulhar no rio, ali, junto ao cais, para apanhar o camarão pequeno que depois vendia para isco. Às vezes, mergulhava só por brincadeira, com os outros rapazes, em jogos ruidosos que assustavam as gaivotas e as faziam voar em círculos.
Depois, começou a andar nos barcos, a fazer transportes de sal e carvão. Na altura, as pernas não lhe falhavam. Ah! Mas ele ainda um dia ia pegar num barco e mostrar a todos do que era capaz. Um destes dias, combinava com o Júlio, e haviam de ir pelo mar fora, logo de manhã, com o sobrinho dele, que tem uma fragata. Ainda lhe havia de ensinar umas coisas! Sentia a alma livre e leve como as gaivotas. As pernas é que não ajudavam.
O médico já lhe tinha dito: “Temos de pensar na operação aos joelhos!” Ele ia dizendo que sim, que pensava, mas sabia que nem queria pensar nisso. Então ele não se lembrava da tia Ernestina, que morava na rua de trás? Andava mal, também tinha as pernas doentes, foi operada e agora andava de cadeira de rodas. Ah, não! Isso não! Ele, numa cadeirinha de empurrar, como as crianças? Não, enquanto pudesse, ia andando, e nem queria pensar na operação.
Quem havia de ficar satisfeita de o ver numa cadeirinha era a Maria Otília, o homem apostava. Quando casaram era uma bela moça, lá isso era! Mas os anos passaram e ele só via vislumbres dessa moça aos domingos, quando a filha lá ia almoçar a casa. Tem os cabelos ondulados e fortes da mãe, os mesmos olhos esverdeados, os mesmos trejeitos de boca. Quando lá vão almoçar, é uma festa! Os netos ainda gostam de o picar: “Então, avô, quando é que vamos ao camarão?” E ele finge que acredita e combina sábados de verão. Mas, no fundo, sabe que esses sábados nunca mais virão.
Ah! Mas a Maria Otília gosta de o amesquinhar, gosta mesmo! Põe-se a remoer, para a filha: “O teu pai, coitadinho, já nem consegue ir ao fundo da vila, quanto mais ao camarão!” Ela não percebe que ele sabe que nunca mais irá, mas gosta de acreditar que sim. Ah! A Maria Otília havia de gostar de o ver na cadeirinha. E ela a apaparicá-lo, a fazer-lhe mezinhas, a tratá-lo como um bebé! Um dia, ele ainda havia de lhe mostrar do que era capaz. Ainda era um homem!
Levantou-se um vento fresco, do lado do rio. Pôs o casaco às costas e o Pinóquio olhou-o com ar interrogativo, como quem pergunta: “Já acabou o passeio por hoje?”
Tinha passado ali um bom bocado, a divagar, enquanto olhava o mar e as gaivotas. Se calhar, deixava a visita ao Júlio para outro dia. Dali a pouco, a Maria Otília tinha o jantar pronto e ficava preocupada se ele não estava em casa às horas do costume. Talvez fosse melhor ir andando.
Levantou-se, ajeitando o casaco nos ombros. O cão espreguiçou-se e começou a caminhar na direcção de casa. “Vamos embora, Pinóquio! A Maria Otília já deve estar à nossa espera. Amanhã, vamos visitar o Júlio. De certeza!”
(Este texto corresponde ao desafio de Fevereiro da Fábrica de Letras, com o tema "Velhice")
Amanhã. De certeza :)
ResponderEliminarTeresa, bom dia. Tudo bem?
ResponderEliminarVim te avisar que vc foi contemplada no blog Varal de Idéias com uma foto sua no perfil.
Link aqui:
http://cimitan.blogspot.com/2010/01/foto-do-perfil_31.html
Um beijao
Amanhã de certeza, diz isso para se convencer que haverá um amanhã. Quem poderá ter a certeza de um amanhã? Mais uma mentirinha idêntica à ida aos camarões. Todos nós descobrimos a maneira de embelezar a realidade, ele também o fazia.
ResponderEliminarBeijinhos
Foi dos textos mais bonitos que já li...
ResponderEliminarDeixou-me deveras triste pensar na melancolia desse homem...
De onde se conclui que a Maria Otília, embora já não seja a bela moça de outrora, ainda tem alguma influência sobre o seu homem.
ResponderEliminarOlá, Teresa. Parabéns pela história do Pinóquio e seu dono.
ResponderEliminarPodes dar-me uma ajudinha na blogGincana? Já coloquei o "boneco" e agora? Tenho de fazer o q?
Bj
Gostei, é preciso acreditar que há ainda um amanhã.
ResponderEliminarBjs
Johny,
ResponderEliminarAmanhã, claro que sim. Quem sabe se ele acreditava mesmo que amanhã iria?
Bjs e volta sempre.
Brown Eyes
ResponderEliminarTodos dizemos e pensamos mentirinhas, e fingimos acreditar nelas. Quanto mais na velhice, quando já pouco mais resta!
Bjs
Su
ResponderEliminarObrigada pelas tuas palavras. Há melancolia neste homem, sim, mas também há uma vida cheia, que ele se recusa a terminar.
Bjs e volta sempre.
Maria Mãe
ResponderEliminarOra bem, a Maria Otília é a pessoa de quem ele está mais dependente, por isso se debate. Como um adolescente que se revolta contra os pais, dos quais ainda depende também.
É claro que ela é a mulher da vida deste homem, e ainda tem muita influência sobre ele, não é?
Bjs e volta aqui, a este cantinho, quando quiseres.
Lilá(s)
ResponderEliminarNós não sabemos se há um amanhã, e como ele será, temos é de continuar a acreditar que não chegou o fim.
Bjs
Apesar de tudo ainda há uma Maria Otília na vida deste homem...
ResponderEliminarOutra coisa interessante neste texto e que pouca gente refere: os animais também envelhecem...eu falo tanto com o meu velho gato Boris!
Beijinho.
Teresa, é de facto um texto muito tocante, muito bonito, muito vivido. Toda a nossa vida vamos adiando coisas, como será chegar a esse momento em que sabemos que estamos a adiar pra nunca mais? Adorei, mesmo.
ResponderEliminarBeijinhos
Olá Pinguim
ResponderEliminarSim, ainda tem a Maria Otília, por quem ele tem sentimentos tão contraditórios! Ser velho não é obrigatoriamente estar sozinho.
Ainda bem que reparaste no cão, estava a ver que ninguém falava dele. Pois, o cão também está velho, é um espelho do homem.
Bjs
Mel
ResponderEliminarObrigada pelas tuas palavras. Acho que nesse momento adiamos, mas fingimos que um dia...
Bjs
Querida Teresa,
ResponderEliminarAdorei o teu conto. As personagens são deliciosas e enternecem-nos o coração. Velho e cão, amigos inseparáveis, juntos numa caminhada, afinal, mais curta do que a pensada.
A velhice assim narrada faz-nos compreender e imaginar que é um momento rico, bonito, enriquecedor, cheio de memórias... e de medos! Fazer uma operação naquela idade e imaginar-se numa cadeirinha de rodas e dependente, fá-lo fugir da dita. Mas quem não fugiria?
O velhinho e a sua Maria Otília são um casal que viveram todo um percurso juntos e vão continuar a fazê-lo.
Gostei da esperança que ainda move o velho. No fundo, o que ele faz é viver!
Minha querida Natália
ResponderEliminarObrigada pelas tuas palavras. Percebeste tudo o que eu queria transmitir com esta pequena história. Afinal, a velhice é só o final de uma caminhada, que nós vamos adiando conforme podemos.
Bjs
Excelente resposta ao desafio! Gostamos de ler este teu texto.
ResponderEliminarBeijinhos
Bela participação!! Amanhã, sim, terá tempo para ir visitar o Júlio e, então divagarão juntos e com o Pinóquio numa bela aventura na apanha do camarão!! Há sempre tempo para viver, recordar e divagar... Principalmente em boa companhia!
ResponderEliminarVagamundos
ResponderEliminarObrigada!
Pensavam que eu só conseguia escrever crónicas de viagens?
Bjs (também gosto sempre de vos ler)
Lala
ResponderEliminarSabes, acho que amanhã eles vão sair outra vez para visitar o Júlio, e talvez não passem outra vez do jardim. O importante é não desistir!
Bjs
Olá Teresa. Por acaso já desconfiava-mos que o talento para a escrita estava longe de se limitar às crónicas de viagem :)
ResponderEliminarBjs
não sou o pinóquio
ResponderEliminarmas sim a sinhã
e vim para voltar
:-)
Vagamundos
ResponderEliminarObrigada. :)
Sinhã
ResponderEliminarÉs sempre bem vinda. Bjs
Muito bom. Quase senti a brisa fresca na face.
ResponderEliminarGostei muito.
*
Opá... dá pena.
ResponderEliminarFez-me lembrar o meu avô que mal conseguia andar mas que andava sempre a dizer:"Um dia destes ainda compro uma Vespa!".
Agora fizeste-me pensar... será que ele tinha a consciência de que jamais a compraria? :\
Gostei muito... bjinhos**
Catsone
ResponderEliminarObrigada. Esteve sentado a ver as gaivotas, com o homem do conto!
Bjs e volte sempre.
Ginger
ResponderEliminarAcho que todos nós, que convivemos com pessoas idosas, encontramos casos destes. E ainda bem. Quer dizer que se recusam a desistir de viver e de ter sonhos.
Bjs