Crise
Olhou para o papel que tinha à frente e sentiu que não lhe saía nada. O papel, como tudo, não era escolhido ao acaso, era amarelado, com linhas, macio. Mas, mesmo assim, não estava a ajudar. Rodou a esferográfica entre os dedos e perdeu-se nos seus pensamentos.
Ainda ontem a mãe lhe tinha dito: "Gasto mais de cem euros por mês na farmácia. Cada vez sobra menos dinheiro da minha pensão!" Pois, também cada vez lhe sobrava menos dinheiro do ordenado. Era o supermercado e os passes para os autocarros dos miúdos. Era o dentista do mais velho, mais o médica das alergias do mais novo. Também precisava de ir ao médico, mas ía adiando, adiando, para um mês mais favorável, que parecia não chegar nunca.
Pôs o papel de lado e foi buscar o portátil. Podia ser que, no ecrã do computador, as ideias se alinhassem com mais clareza e ligeireza. Enquanto esperava pela ligação, pensou no jantar. Não tinha deixado nada preparado, lá tinha de inventar qualquer coisa, com os ingredientes mais económicos. Um empadão era uma boa ideia, rendia muito, talvez desse para o dia seguinte. Lembrou-se que, no dia seguinte, o filho mais velho ia a uma visita de estudo da escola. Ainda tinha de lhe dar dinheiro, e agora não dava jeito nenhum, tão perto do fim do mês.
O ecrã do computador estava à sua frente, mas só lá via o seu próprio reflexo, os olhos cansados, os vincos aos cantos da boca (tinha-os descoberto há pouco tempo, será que já lá estavam e só os via agora que sentia a alma vincada e enrugada?), o cabelo a precisar de uma pintura que lhe desse a ilusão de que os anos afinal passavam mais devagar...
Voltou a pegar na folha de papel, juntamente com a conta da luz, que estava por baixo e que tinha de ser paga até ao final da semana. Perdeu-se a olhar para o envelope com o logotipo da empresa de distribuição elétrica, a revolteá-lo nas mãos. Cada vez pagava mais. Já não sabia se era do aumento do IVA, se do aumento da tarifa, se daquele maldito inverno que não havia meio de terminar, e que a obrigava a ligar o aquecedor à noite, na sala, no quarto dos miúdos. Tinha de o ligar menos tempo, só um bocadinho antes deles se deitarem. Racionalizar as despesas, controlar os gastos! Difícil era saber onde racionalizar mais!
Recostou-se na cadeira, a olhar para o ecrã brilhante e vazio. Decididamente, estava numa crise. Uma crise de inspiração!
(Este texto integra-se numa blogagem coletiva promovida pela
Fábrica de Letras, neste mês de janeiro com o tema Crise)
Excelente e parece que se passa na vida de muita gente...
ResponderEliminarMuito bem tratado o tema e sobretudo bem escrito!
ResponderEliminarSente-se a densidade psicológica da crise!
Abraço
Pinguim, Rosa
ResponderEliminarTemos de ter muita inspiração para ultrapassar esta fase tão difícil.
Bjs
Infelizmente, um quadro bem elucidativo do que se passa em casa de muitas famílias portuguesas! Mas há que ter inspiração e seguir em frente... :)
ResponderEliminarBeijocas!
Vim aqui parar através da Fábrica, essa maravilhazinha... =) E gostei! Gostei da sensibilidade humilde com que descreves uma cena tantas vezes repetida, tantas vezes vivida com angústia. e gostei também dos outros posts que espreitei! Vou seguir! =)
ResponderEliminarObrigada Briseis.
ResponderEliminarVolta sempre que te apetecer. Há sempre um chazinho à espera.:)
Olá, Teresa
ResponderEliminarO seu texto parece arrancado do quotidiano da maior parte das pessoas. Escrita dinâmica,limpa,com uma sensibilidade que nos atinge muito de perto.
Parabéns!
:)
Bj
Olinda
Olinda
ResponderEliminarEste texto é o quotidiano da maior parte das pessoas, que vive com dificuldade em esticar o dinheiro até ao fim do mês, que faz muitas contas, que vai avançando como pode.
Bjs
Gostei da sua escrita, e do texto.É como olhar para dentro de nós.Vou voltar.
ResponderEliminarObrigada Eduardina
ResponderEliminarVolte sempre. Há sempre um chazinho à espera dos amigos. :)
Que nunca percas a mania de escrever! Muito bonito!
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