A violência do costume


Mais uma vez, o relatório anual sobre a violência doméstica apresenta os números terríveis desta realidade que continua tão presente e tão escondida. Só neste ano, já foram assassinadas trinta e três mulheres e este número, já de si chocante, não nos pode fazer esquecer todos os outros casos de violência que não chegaram a resultar na morte da vítima, ou que nem sequer foram reportados à polícia. É um problema transversal a todos os grupos sociais e nem é monopólio português, é um problema generalizado, observado e monitorizado em todos os países da União Europeia, como se pode ler aqui
Nada disto é novo, já se discutiu e alertou, eu própria já escrevi sobre esta negra realidade noutros posts. No entanto, todos os anos os resultados do relatório me atingem com o mesmo espanto, dor e incredulidade, como um murro no estômago. A violência doméstica só está presente para quem a sofre ou com ela contacta. De resto, desaparece nos subterrâneos da vida social, por vezes bem camuflada.
Há uns anos atrás, uma aluna minha, com doze anos acabados de fazer, veio ter comigo no final de uma aula. Estavamos a meio do ano letivo. Ela chegou-se a mim e abraçou-me, com força. Ri-me.
- Então, que é isto? Parece que vais fazer alguma viagem!
Ela aproximou a boca do meu ouvido e disse baixinho:
- Vou mesmo!
- Ah sim? E para onde vais?
- Não sei, a minha mãe diz que ninguém pode saber.
Depois de olhar à volta, como a certificar-se de que ninguém a poderia ouvir, continuou a susurrar:
- A minha mãe diz que temos de sair de repente, sem levar nada. Para o meu pai não desconfiar. Para ele não conseguir descobrir-nos, nunca mais.
Não precisei de ouvir mais nada. Abracei-a também. Depois, ela voltou-se e despedimo-nos, sem palavras, que elas às vezes não servem para nada. Só com um sorriso.
Nunca mais a vi.

Comentários

  1. Se bem que as mulheres sejam quem directamente sofrem mais, fisicamente, com esta violência inqualificável, também as crianças, de uma forma indirecta, muitas vezes psicológica, são por ela atingidas.
    É uma tristeza que muitas mulheres sofram em silêncio...

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  2. Um post fantástico - ainda que o tema não o seja. Realidade cruel que teima em não perecer...

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    Respostas
    1. Fáty
      A realidade não muda enquanto a mentalidade não mudar. A dos homens e a das mulheres, também.

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  3. Uma história de vida comovente! E é tão triste quando as crianças, tão cedo, precisam "mudar de vida"...

    Beijinhos!

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