O Colecionador


Lá no bairro, todos o conheciam por Januário das Caras. Desde miúdo que lhe sabiam do gosto por colecionar caras de pessoas. Começou pelos retratos da família, que pedinchava a todos, e pelas sobras dos retratos da máquina de Photomaton, que estava instalada na Papelaria do Sr. Luis. Achavam-lhe graça, comentavam as imagens que ele juntava num pequeno álbum, de folhas negras: “Olha, é a tia Micas, ainda antes de casar!” ou “Esta não é aquela senhora que vive ali na rua de baixo?” E piscavam-lhe o olho, cúmplices.
Com a idade, o gosto foi-se acentuando. Fotografava toda a gente, família e amigos, vizinhos e gente que passava na rua. Considerava-se um colecionador de rostos e nada lhe dava mais prazer do que sentar-se na mesa da sala, a folhear os seus inúmeros álbuns, a observar as caras, as mudanças na expressão, a imaginar as histórias por trás de cada ruga, de cada olhar angustiado, de cada sorriso malicioso. Às vezes, punha-se a mudar a forma de catalogação dos seus rostos, só para ter o prazer de lhes mexer. Podia catalogá-los por género ou por idade, pêlos na cara ou caras rapadas, data da fotografia, ou qualquer outra forma.
O seu gosto começou a tornar-se uma obsessão. Quando lhe negavam o prazer de uma foto, ficava a pensar na forma de a obter, imaginando pequenas transgressões que lhe permitissem aceder ao objeto dos seus desejos. Foi assim que Januário decidiu subir a uma árvore situada junto ao gradeamento da escola, para obter fotos dos rostos dos alunos no recreio. O guarda da escola viu-o, obrigou-o a descer da árvore e levou-o ao gabinete do Diretor, que lhe deu um raspanete como se ele tivesse sete anos.
Mas a obsessão agudizava-se. Uma noite, resolveu trepar pelas varandas de um prédio, para captar as expressões dos rostos nas situações familiares. Fotografou mães a darem a última papa aos filhos; homens a tomarem banho, no regresso do trabalho; casais a fazerem amor; gente concentrada a escrever, outros a verem televisão, outros a dormirem de boca aberta. Correu bem, Januário veio para casa satisfeito. Mas na sua segunda incursão noturna, foi apanhado. E foi parar à prisão.
A juíza ouviu dezenas de testemunhas, desde a professora da instrução primária até aos vizinhos do prédio. Ouviu também o Januário, numa audiência privada. E libertou-o, com uma advertência. Houve quem dissesse que tinham chegado a um acordo, porque a juíza era um dos rostos apanhados por Januário numa casa que não era a sua, com um marido que também não era o seu. Mas a maioria das pessoas defendia que a juíza tinha libertado o homem porque acreditava na inocência dele.
Quando o Januário descia, feliz, as escadas do tribunal, ainda conseguiu fotografar os dois guardas que o escoltavam. Ambos lhe sorriam. E essas fotos foram arquivadas no álbum das raridades.


(Texto criado para o desafio de Abril da Fábrica de Letras
com o tema Rostos)

Comentários

  1. Fez-me lembrar "O Fabuloso Destino de Amélie".
    Gostei muito, sobretudo destas últimas imagens...
    :)

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    1. Um filme que eu amei! Se calhar influenciou-me involuntariamente! :)

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  2. Lindo e muito bem elaborado teu texto.Participação muito boa!beijos,desde já uma linda ,abençoada Páscoa!chica

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  3. Não poderia esperar outra coisa de ti, nesta preciosa colaboração com o novo tema da "Fábrica de letras".

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  4. Até me fizeste interromper a dieta dos comentários na blogosfera, rrsss Tenho a impressão que aos pouquinhos vou voltando. Gostei muito desse coleccionador de rostos. Foi bom voltar a ler-te! :) Beijinhos

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    1. Eva
      Tenho muito prazer em te rever por aqui. Vai passando, não precisas de comentar. :)
      Bjs

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  5. O Rui Pascoal tirou-me os dedos do teclado! :-))
    Fabuloso mesmo! :-))

    Abraço

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  6. Que lindo texto! Uma doçura!
    Beijinhos doces e ovinhos de chocolate...

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  7. Photomatons e álbuns de fotografia…

    Obsessões, são o que são e daí nada de bom pode brotar…

    Gostei mesmo muito do texto, é de certa forma irreverente, bem-humorado, bem escrito e imprevisível quanto ao desfecho…

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    1. Pois é, as obsessões geralmente dão mau resultado!
      Bjs

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  8. Este é definitivamente um estilo que gosto. E que por coincidência também cultivo. Quanto ao texto e à imaginação da autora, o meu grande aplauso.
    Um beijo Teresa, cujo blog, de vez, me cativou.

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  9. Oh, oh, e o que o fulano ganharia se fosse paparazzi, ahn? Isso sim é que era pôr a sua vontade de fotografar ao nível do voyeurismo do pessoal que consome revistas cor de rosa... ;)

    Mas gostei muito do texto!

    Beijocas!

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    1. Tens razão, Teté! O rapaz não soube pôr os seus talentos a render! :)
      Bjs

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  10. Gostei imenso do texto, mas espero que nunca me veja nessa situação: é que eu adoro fotografar, mas não me quero tornar obcecada, rrss

    Boons sonhos.

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    1. Acho que não corres esse perigo, continua a fotografar à vontade! :)
      Bjs

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  11. Podes dar-me o contacto do Januário? Tenho umas multas por pagar e dava-me um jeitão ter a tal fotografia da juíza! Beijoca!

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  12. Amiga Teresa, parabéns uma excelente participação.
    Tenho saudades de participar na Fábrica das Letras, mas sinceramente ando com pouca imaginação.

    Beijinhos

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    1. Não te preocupes Fê, a imaginação volta logo!
      Beijinhos.

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  13. Li como ficção, mas não estranharia se fosse realidade... Afinal há por aí uns paparazzi que se safaram de igual modo (ao que consta...) mas esses ganham a vida em revistas cor de rosa.

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    1. A ficção mais surreal mistura-se estranhamente com a realidade!
      :)

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  14. Januário, o fotógrafo compulsivo!!
    Não devia de ser o ladrão de imagens, pois foi inocentado! :)
    Gostei muito do texto e fiquei a imaginar a cara sapeca de Januário!
    Beijus,

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    1. Luma
      O Januário devia ter cara de malandro; ou de alguém que vive fora da realidade; ou a cara mais comum possível; quam sabe?
      Bjs

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  15. Ai, que maravilha, Teresa! O sr. José, no livro Todos os Nomes, de Saramago, tinha uma obsessão pelos nomes e pelos registos de nascimento das pessoas... Cá para mim, o Januário tem uma panca muito mais interessante... E daria um livro maravilhoso, decerto, a história do homem que coleccionava rostos... =)
    Um beijinho

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    1. Gostei muito desse livro de Saramago! Quem sabe se a história do Januário não dava também um bom livro?
      Bjs

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  16. Respostas
    1. Por vezes, garantida através de meios pouco inocentes...

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