Uma questão de espinhos
Foi o mocho Julião quem o
encontrou, na berma da estrada que conduzia ao portão da quinta. Era uma
bolinha de pelos duros e acastanhados. Deu-lhe um empurrão com a cabeça e
viu-lhe os olhinhos assustados e as pequenas orelhas. A bolinha de pelos era afinal
um jovem ouriço cacheiro, de patas chamuscadas pelo incêndio que devastara, durante
dois dias inteiros, as serranias vizinhas.
Julião não descansou
enquanto não o levou até à quinta. Lá dentro, com a solidariedade de alguns
amigos, foi alimentando o pequeno ouriço, trazendo-lhe aranhas e escaravelhos,
lesmas e minhocas. Afeiçoou-se-lhe de tal modo que até pensou em dar-lhe o seu
nome. Mas Julião assentava tão bem ao pequeno ouriço como um casaco três
números acima, e acabou por lhe dar o nome de Júlio.
As patas de Júlio foram
cicatrizando e começou a ser mais autónomo. Afastava-se durante a noite, à
procura dos seus pitéus preferidos, mas pela manhã voltava para junto de
Julião, que se considerava o seu guardião ou uma espécie de irmão mais velho,
com penas em vez de espinhos.
Sim, porque os pelos de
Júlio tornavam-se cada vez mais duros e aguçados e isso não lhe grangeava
muitos amigos. Quando os cachorros e outros jovens da quinta se juntavam para
os seus jogos de fim da tarde, Júlio tentava participar mas havia sempre uma
altura em que um dos seus espinhos se espetava num nariz mais sensível e lá
vinham as acusações: “Estúpido! Não sabes recolher os espinhos?” Não sabia,
não! E enrolava-se a um canto, feito numa bola de espinhos, para não ter de
aturar recriminações.
Fez-se taciturno. Tinha
pena de não ter amigos, e reagia com amargura, afastando-se cada vez mais.
Assim se passou um ano inteiro.
Na primavera seguinte,
Júlio acordou da hibernação com uma sensação de tristeza e falta de esperança.
Mais um ano de solidão! Mais valia voltar a hibernar outra vez! Julião, que lhe
velava o sono de inverno, sacudiu-o: “Júlio, acorda de vez! Cada ano é um
recomeço, cada dia é uma nova oportunidade! Não sabes o que o dia de hoje te
pode trazer!”
Júlio saiu a passear pela
quinta, devagar, pouco convencido. Perto da ribeira, no entanto, teve uma visão
maravilhosa: um ser igual a ele, de uma bela cor amarelada e olhos doces.
Parou, sem conseguir respirar. Seria real? Não teve coragem para descobrir. Deu
meia volta e correu o mais depressa que as suas pequenas patas lhe permitiram.
Julião viu-lhe o ar espavorido. O que se teria passado? Então Júlio desabafou.
Tinha visto uma ouriça meiga e atraente, mas não tinha coragem de tentar a
aproximação. Ele magoava todos os que se aproximavam dele com os seus espinhos.
E também não queria magoar-se com os espinhos alheios. Não havia solução para o
seu problema. Ia viver e acabar sozinho!
Julião cobriu-o com a sua
grande asa. “Às vezes, pico-me nos teus espinhos, sabes? Mas tu não me queres
magoar, eu sei, e por isso eu perdoo-te. Nem te digo nada!” Júlio olhava-o com
os seus olhinhos pequenos e assustados, muito atento. Nunca tinha dado por magoar
o seu amigo Julião. “Todos temos espinhos, ou garras, ou dentes. Todos nos
podemos magoar uns aos outros. Devemos evitá-lo, mas devemos estar preparados
para, de vez em quando, levar uma picadela inadvertida.”
Durante um dia e uma
noite, Júlio andou de um lado para o outro, sem conseguir comer nem descansar,
a matutar na conversa do Julião. Depois, tomou uma decisão. Encaminhou-se para
a ribeira e espreitou. Lá estava ela. Avançou, ainda um pouco amedrontado mas
decidido. Ambos tinham espinhos, tinham de aprender a viver com os espinhos um
do outro.
(Este post integra-se na proposta da Fábrica de Letras para o mês de Setembro, com o tema Recomeços)
Adorei a sua estória minha amiga,
ResponderEliminarÉ preciso muita coragem para aprender a viver com os espinhos uns dos outros.
beijinhos
É verdade Fê, não é fácil.
EliminarBjs
Magnífica estória, Teresa! Ternura, amizade,descoberta e uma grande lição de vida.
ResponderEliminarCarlos, ainda há estórias que acabam bem... :)
EliminarEncontrá-lo, recolhê-lo, alimentá-lo, abaná-lo, fazer-lhe ver o outro lado, não está ao alcance de qualquer animal, só mesmo um mocho o poderia ter feito.
ResponderEliminar(Quem escreve assim... não devia parar).
:)
O mocho representa a sabedoria. Às vezes, até a mim me apetecia ter um mocho ao lado, para me dar uns conselhos!
Eliminar(Obrigada... mesmo!)
Olá, Teresa!
ResponderEliminarVim procurar dicas para o desafio da Teté! : )
Gostei muito do que li. Visitá-la-ei mais vezes.
Abraço
E encontraste algumas pistas?
EliminarVolta sempre que quiseres.
Bjs
Fez-me lembrar "Os Bichos" ,do grande Miguel Torga.
ResponderEliminarUm abraço carinhoso.
Agradeço a comparação, com uma grande humildade.
EliminarBeijinho.
Lindíssima história... Linda fábula... A metáfora é muito boa, mas há várias metáforas... Um Júlio preocupado com os seus próprios espinhos, sem pensar no que os espinhos da bela ouriço lhe poderiam causar... Obrigado Teresa por partilhares connosco essa tua veia... sem espinhos.
ResponderEliminarVale usar luvas?
As fábulas são sempre metáforas da vida...
EliminarVale usar luvas, fatos de cauchu, tudo o que for preciso :)
Lindo e sempre faz pensar essa história de convivência, espinhos e recomeços...beijos,chica
ResponderEliminarHá que não ter medo de recomeçar, quantas vezes for preciso, apesar dos espinhos!
EliminarBjs
Gosto tanto das suas histórias com animais, é sempre um regalo ler estes textos.
ResponderEliminarNa verdade, todos nós temos pequenos espinhos, temos de saber lidar com os espinhos uns dos outros. Gostei do final da história, não deixa de ser um final de amor :)
Beijinhos
Catarina, provavelmente o amor é que dá força para aguentarmos os pequenos espinhos uns dos outros. Seja qual for o tipo de amor! Senão, não havia paciência...
EliminarBjs
Há tempos, no "meu poleiro", escrevi um texto de sentido semelhante, também com ouriços... então, ler o teu, infinitamente mais doce e optimista, comoveu-me imenso! =)
ResponderEliminarJá agora, o texto está em http://domeupedestal.blogspot.pt/2010/02/ouricos-cacheiros.html
É pequenino. Não leva tempo nenhum a ler... =)
Já lá fui, e tens razão, o teu texto é muito semelhante ao meu, na ideia de que temos de nos "aquecerr" uns aos outros, apesar dos picos. Coitadinhos dos ouriços, só nos lembramos deles por causa dos picos!... E são uns bichinhos tão giros!
EliminarBjs
Gostei muito desta história, o Julião e o Júlio são personagens bem reais!
ResponderEliminarFoi uma excelente resposta ao desafio da Fábrica de Letras!
Beijos