A arte e a dona Cecilia

Este ano letivo, tenho uma turma gira, de miúdos interessados e questionadores. No início das aulas, damos sempre uma vista de olhos aos conteúdos curriculares previstos e, ao depararmos com os percursos da arte no século XX - e depois dos comentários habituais, do estilo "Fazem um risco num quadro e dizem que é arte! - um aluno interroga-se: "Mas, afinal, o que é que transforma uma obra numa obra de arte?"  Resolvi pegar na questão, para os pôr a debater e a refletir.
Falámos do autor, do nome, do percurso. Da inovação, da intencionalidade, da harmonia, do questionamento. Até que um aluno se lembra do quadro da catedral de Borja, em Espanha, recuperado pela senhora dona Cecilia Jimenez. Foi gargalhada geral! Quem não se lembra do "Ecce Homo", transformado pelas mãos da dona Cecilia num fenómeno de popularidade, que correu pela internet e pelas redes sociais como um virus?


Uma aluna lembrou-se:
- Eu já vi um quadro de Picasso em que ele alterava um quadro mais antigo. (Devia referir-se às Meninas de Velasquez) Mas, como era de Picasso, ninguém achou mal.
- Ele fez um quadro a gozar, mas não estragou o antigo. (Boa resposta, pensei eu!)
- Alguém se lembra do nome do autor do quadro original?
Silêncio na sala.
- Aposto que, numa galeria de arte, o quadro da dona Cecilia é vendido por mais dinheiro do que um quadro do autor original. (Miúdo esperto!)
- Afinal. o que é que dá valor a uma obra de arte?
Deixei a pergunta a pairar no ar.
Senti vontade de telefonar à dona Cecilia a sossegá-la. Não valia a pena entrar em depressão. Ao fim e ao cabo, a sua restauração tinha atraído milhares de turistas a Borja, o que não é desprezível, nesta época de crise.
Ainda tinha tido o efeito colateral de pôr os meus alunos a pensar sobre o objeto artístico e o mercado da arte. E sobre a valorização que este nosso mundo faz do que é efémero e insignificante.

Comentários

  1. E a dúvida persiste... o que define uma obra de arte?
    Muitas vezes perante determinadas obras de arte admiradas por tanta gente eu me lembro da história do «REI VAI NU»....:)
    xx

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    1. Pois, podemos falar de muitas coisas, mas no fim não se consegue dar uma resposta concreta...
      Bjs

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  2. Permita-me que relacione este seu post com outro escrito pela TEté na sexta-feira sobre o sucesso das pessoas. Eu penso que a resposta a uma e outra questâo estão muito relacionadas, não lhe parece,Teresa?
    Gostei particularmente ( e partilho a opinião) do seu aluno "Aposto que, numa galeria de arte, o quadro da dona Cecilia é vendido por mais dinheiro do que um quadro do autor original.".
    Pode ainda não ser verdade, mas a seu tempo lhe será dada razão. Pelo menos, já é mais famoso do que o original, que pouca gente conhecia...

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    1. Também me parece Carlos, e escrevi à Teté que essa era uma questão interessante. Afinal, o que define o sucesso de uma pessoa? E o que dá valor a uma obra de arte? Hoje em dia, tudo tem uma lógica mediática.
      (também acho que o miúdo tem razão :)

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  3. Sem dúvida uma interessante discussão!:) A aula era de quê, já agora? Não sei o que leciona/s.:)

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    1. Sou professora de História. E gosto muito do que faço. Dispensava bem os quilos de papel, relatórios, planos, mas não dispensava os olhos brilhantes dos miúdos quando se interessam por um assunto ou descobrem uma coisa nova. Eu sei que não é uma profissão muito bem paga, ou com muito prestígio social, é muito cansativa, mas não a trocava por outra. :)

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  4. Olá Teresa,
    Este caso que recuperas aqui fez-me rir de mansinho, pois efetivamente a popularidade que atingiu na altura foi enorme. Não sei bem já quem deu inicio áquele triste espetáculo das romarias, levando à depressão da pobre D. Cecília, mas naturalmente que os meios de comunicação, vulgo televisão, não está inocente, obviamente.

    É assim. Houve um caso, penso que também em Espanha, de um quadro pintado por crianças do primária que foi colocado no meio de obras de grandes autores e que teve ofertas extraordinárias.

    O que quero dizer com isto? Que tudo não passa de propaganda e muita ignorância. Mas levantas uma reflexão importante - um mau quadro, pintado por um famoso vale sempre milhões. Ninguém ousa colocar em dúvida a qualidade da obra.

    Beijinho

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    1. JP
      Por isso, esta é uma discussão interessante mas sem conclusão. O que faz uma obra de arte? Acho que hoje o mercado da arte é muito manipulado, e segue lógicas de interesse que nem sempre coincidem com a qualidade das obras.
      No caso da dona Cecilia, passei do riso para a pena da pobre senhora. Mas hoje já penso de outra maneira. A mediatização do caso, esta mediatização efémera, deu à senhora, ao quadro, à terra, uma notoriedade que é real. E que tem valor económico, não é?

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  5. Nada como partir do concreto para os pôr a pensar!

    Abraço

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    1. Rosa, aprender a pensar devia ser o principal objetivo do sistema educativo. :)
      Bjs

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  6. Não sou dos que criticam a senhora. Graças a ela a obra esquecida passou a ter uma visibilidade nunca antes vista.
    :)

    "Qualquer idiota é capaz de pintar um quadro (até eu). Mas só um gênio é capaz de vendê-lo."
    (Samuel Butler)

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  7. Miúdos espertos, mesmo, Teresa! Ter certezas nesse domínio é complicado, faz lembrar aquele macaco de uma telenovela que pintava quadros a imitar o pintor, e esses eram mais bem sucedidos... Claro que era uma comédia mas, às vezes, a realidade suplanta em muito a ficção... :)

    Beijocas!

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    1. É uma área complicada, mesmo! A história do macaco fez-me lembrar um elefante que também pintava, e era um sucesso! :)
      Bjs

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  8. São destes momentos de "discussão" que sinto saudades de ter com os meus alunos! Estou a seguir o seu blog, tenciono cá voltar para ler aquilo que tem para nos dar!

    Beijo

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    1. Olá Alexandra!
      São estes momentos que valem a pena e compensam o resto!
      Volte sempre. Beijinho.

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