A alma das flores

- O que é que tem hoje, D. Adília?
Abriu a boca para dizer qualquer coisa, talvez o costumeiro "não é nada", mas ficou com o gesto suspenso. Passado um momento, meneou a cabeça, sem conseguir dizer uma palavra.
- Está aí com uns olhos tristes, a cabeça encostada na mão... passa-se alguma coisa!
- Nem sei como explicar.
Os anos, já mais de oitenta, pareciam pesar-lhe mais do que o costume. Suspirou. Como explicar o que lhe ia na alma?
- Andam a limpar a fachada do meu prédio. Fazem a limpeza com jactos de areia e temos de ter as janelas e as varandas desocupadas. Comecei a tirar os vasos de flores, mas não tenho onde os pôr. A minha casa é pequenina, não tenho sítio para as minhas flores. Já comecei a dá-las, mas acho que algumas vão morrer. Custa tanto separar-me das minhas flores! Tenho umas sardinheiras vermelhas, grandes, carnudas... e uma buganvília, linda! O que vai ser das minhas flores?
Limpou uma lágrima e voltou a suspirar.
- A minha filha já ralhou comigo, disse que era uma palermice e que me comprava outras flores novas. Mas ela não compreende. Eu tenho aquelas flores há muito tempo. A partir de uma certa idade, nós pegamo-nos às coisas, é como se elas tivessem uma alma e fossem nossas amigas.
Eu, que estou a ouvir a conversa, penso que a filha compreende, sim, mas tenta desvalorizar essa relação que nos prende aos objetos e às coisas que nos rodeiam, para ajudar a mãe. Quando os anos passam, essas relações são pequenas âncoras que nos prendem à vida. Ganham uma alma, sentidos ocultos. E não faz sentido cortar esses laços de alma.


Nota: Esta pequena história é real, como outros retalhos da vida que eu vou apanhando e trazendo para o blogue. Mas o nome da mulher é inventado. Escolhi-o em recordação de outra mulher, também já com mais de oitenta anos, e que sempre gostou de flores.

Comentários

  1. Lindo, doce e terno e esse apego não faz mal...è sinal de uma alma pura! Quem gosta de flores é legal! bjs, chica

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  2. Bom dia, Teresa

    São casos que se repetem a todo o momento, realmente,
    e a alma das coisas vai se perdendo nas exigências e
    exageros do quotidiano.

    Bj

    Olinda

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