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Crocodilos na piscina

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Ouvi há dias uma história engraçada.  Um milionário deu uma festa magnífica na sua casa. A comida, a animação, estava tudo excelente. Os convidados foram ficando cada vez mais animados, à medida que a música e a bebida aceleravam os ritmos. Lá para o meio da noite, o anfitrião convidou todos para se reunirem à volta da piscina. Tomar um banho noturno parecia mesmo uma boa ideia! Quando chegaram à piscina, o dono da casa declarou: - Ofereço 100 000 euros a quem se atirar à piscina e a atravessar até ao outro lado!  Parecia uma coisa fácil e foram vários os convidados que se abeiraram da piscina. Foi então que se começaram a ver vultos na água: eram crocodilos! Vários crocodilos nadavam calmamente, como quem espera o pequeno almoço... Todos os que se tinham chegado à beira da piscina, mesmo os mais afoitos, agora recuavam. Já ninguém tinha vontade de dar um mergulho! Mas o dono da casa insistia: - Subo a aposta! Ofereço 500 000 euros ao primeiro que chegar ao outro lad

A Maria e o Pai Natal

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Entrou dezembro e começa a sentir-se a aproximação do Natal. Fazem-se contas para que, pelo menos as crianças, continuem a ter algumas prendas debaixo da árvore de Natal. As iluminações lá vão aparecendo, bolas, luzes, presépios, Pais Natais, que trazem alegria e esperança a este inverno. A filha de uma amiga minha, a Maria (vamos chamar-lhe assim), era uma fã incondicional do Pai Natal. Não ligava muito aos Pais Natais de pacotilha que pululavam pelos centros comerciais. Ela tinha o dela, o único, o verdadeiro, que ía pessoalmente lá a casa levar as prendas, na véspera de Natal.  Às vezes, parecia-lhe reconhecer os olhos bondosos do tio, por trás de umas longas barbas brancas, mas não se deixava influenciar. Chegou a bater-se na escola primária, em defesa do seu ídolo. - Tu és parva, são os pais que compram as prendas! - Não, eu sei que é o Pai Natal que as traz! - Mas como é que ele entra? Tu nem tens lareira! - O meu Pai Natal é moderno, sobe as escadas e toca a campainha

Música pela manhã

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Clara parou no semáforo e, como fazia todas as manhãs, aproveitou o tempo para ligar o rádio. Hum, Tina Turner, perfeito para injetar energia na manhã fria. Começou a cantarolar, enquanto tamborilava com os dedos no volante. Parou um carro ao lado e Clara olhou automaticamente para a direita. O condutor era um homem bem parecido, de têmporas grisalhas e ar desportivo a emergir de um blusão de cabedal, com um cachecol enrolado ao pescoço. Também parecia murmurar qualquer coisa. Olhou para Clara, no carro ao lado, no momento em que ambos cantavam "What's love got to do with it?" Ouviam a mesma estação de rádio, cantavam a mesma canção. Riram com gosto e Clara ainda sorria quando o semáforo ficou verde e seguiu para o trabalho. No dia seguinte, à mesma hora, no mesmo semáforo, voltaram a ver-se. Reconheceram-se, acenaram, sorriram. Ao fim de uma semana, Clara já antecipava aquele momento. Havia sempre um sorriso, uma piada, umas palavras a propósito do tempo ou do trânsit

Uma questão de espinhos

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Foi o mocho Julião quem o encontrou, na berma da estrada que conduzia ao portão da quinta. Era uma bolinha de pelos duros e acastanhados. Deu-lhe um empurrão com a cabeça e viu-lhe os olhinhos assustados e as pequenas orelhas. A bolinha de pelos era afinal um jovem ouriço cacheiro, de patas chamuscadas pelo incêndio que devastara, durante dois dias inteiros, as serranias vizinhas. Julião não descansou enquanto não o levou até à quinta. Lá dentro, com a solidariedade de alguns amigos, foi alimentando o pequeno ouriço, trazendo-lhe aranhas e escaravelhos, lesmas e minhocas. Afeiçoou-se-lhe de tal modo que até pensou em dar-lhe o seu nome. Mas Julião assentava tão bem ao pequeno ouriço como um casaco três números acima, e acabou por lhe dar o nome de Júlio. As patas de Júlio foram cicatrizando e começou a ser mais autónomo. Afastava-se durante a noite, à procura dos seus pitéus preferidos, mas pela manhã voltava para junto de Julião, que se considerava o seu guardião ou uma espéc

A família do lado

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Sentei-me na esplanada, estiquei as pernas e, como sempre, olhei em volta. Quase simultaneamente, uma família sentava-se na mesa do lado. Alguma coisa me chamou a atenção e continuei a observá-los, pelo canto do olho. O pai era alto e forte, mas tinha um ar mortiço. Sentava-se muito direito, o olher perdido no infinito, as mãos abandonadas no colo. A mãe, pelo contrário, tinha energia para dar e vender. Agiatava-se permanentemente, falava alto, ajeitava a cadeira do marido, punha-lhe o braço por cima do ombro enquanto lhe beijava a bochecha. E ele, de olhar mortiço preso ao horizonte... Traziam um miúdo de uns nove ou dez anos, que os tratava por pai e mãe. De óculos e franzino, parecia não pertencer ao conjunto. Encomendaram umas "tapas" e, quando chegou a comida, a mãe atacou os pratinhos com uma voracidade que condizia com o seu corpo volumoso. Tomou posse do garfo, comendo apressadamente. De vez em qaundo, metia uma garfada na boca do marido, que não esboçava um gest

Os Sonhos

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O que é a Esperança? Se calhar é a coragem de olhar para cima, para fora das dores, da depressão. Ter a coragem de sair do desamor, sair de si, sair para a rua, sair para a vida. E lutar pelo direito a ser feliz. Este post responde a um desafio do blogue Luz de Luma , O Amor aos Pedaços, este mês com o tema Esperança. Quando Viv abriu a porta, Mister Nobody e Mister Nowhere adiantaram-se simultaneamente para a cumprimentar. - Bom dia, Viv. - Como está, Viv? - Eu sou Mr. Nobody. - Eu sou Mr. Nowhere. - Estamos aqui para lhe sermos úteis… - Sim, podemos ser-lhe de grande utilidade. - Isto, se nos poder pagar. - Mas o pagamento é negociável, é claro. Viv olhava surpreendida para os dois homens, enquanto continuava, mecanicamente, a limpar as mãos ao avental. Não sabia o que pensar de todo aquele arrazoado. - Se os senhores vêm vender enciclopédias, ou trens de cozinha a um preço excepcional, ou conjuntos de atoalhados incrivelmente baratos, ou mesmo uma

O Conto do Vigário

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Não sei se foi por, hoje de manhã, ouvir partes do debate quinzenal na Assembleia da República. Talvez tenha sido um acaso. Mas a verdade é que me recordei de um texto que me enviaram, aqui há tempos, sobre a origem dessa manifestação cultural que dá pelo nome de Conto do Vigário . O texto vem atribuído a Fernando Pessoa; não sei se o é, se é obra do ortónimo, de algum dos heterónimos, ou se é um neterónimo, isto é, circula na net  como sendo da sua autoria, mas sem validação nem provas. Assim, vou publicar este texto tal como mo passaram a mim. (Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros - 1935) A Origem do Conto do Vigário Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário. Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr.

O Recado

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- N.º 1, n.º 2… A professora começou a fazer a chamada e os alunos iam levantando o braço para assinalar a sua presença. - … n.º 3, n.º 4… Na última fila da sala, António deu uma cotovelada ao colega do lado: “Passa este recado para a Carolina!” O colega acenou brevemente com a cabeça e pôs o recado a avançar em direção à primeira fila. António ficou a ver o pequeno papel dobrado a passar de mão em mão. - …n.º 7, n.º 8… Tinha passado um bom bocado do serão, no dia anterior, a compor as frases que agora avançavam naquele papel dobrado. Misturava a lua com o brilho das estrelas e a cor do mar com a frase fundamental: “Gosto de ti!” O resultado final tão depressa lhe parecia inspirado, romântico e poético, como lhe soava a idiota e fora de moda. Agora, já não havia nada a fazer. O papel avançava inexoravelmente para a sua destinatária. - …n.º 11, n.º 12… Lá à frente, Carolina folheava distraidamente o livro. E então António viu o papel com o seu recado amoroso ser entregue

O menino que gostava de ler

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Era um menino que gostava de ler. Tinha aprendido, juntamente com os outros meninos da fazenda, na pequena escola que ficava no topo da colina. Mas, enquanto os outros se encantavam com os pássaros e os toiros, ele fascinava-se com as letras. Lia tudo o que encontrava, os cartazes da beira da estrada, os farrapos de notícias que chegavam a esvoaçar em pedaços perdidos de jornais, os rótulos das latas que se deitavam fora, as bulas dos remédios para os cavalos. Punha a cozinheira maluca, sempre a ler os escritos das embalagens. Só lhe faltavam os livros... Até que um dia tudo mudou. Houve um grande incêndio na fazenda. Foi o pânico, todos corriam de um lado para o outro, acartando água, batendo no chão com pequenos ramos para evitar reacendimentos, ou apenas gritando e atrapalhando todos os que tentavam salvar a aldeia e os campos de cultivo à volta. Ninguém ligava importância ao garoto, que fugiu pelos campos para o sítio que lhe pareceu mais seguro: a Casa Grande. Em situações n

Desencantos felizes

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Ah, o amor que move as nossas ações e dá sentido aos nossos dias! (O texto seguinte integra-se no desafio "Amor aos Pedaços" lançado pelo blogue Luz de Luma , com o tema "Desencanto".) O primeiro sintoma manifestou-se no segundo ano do casamento. Era sábado e Júlia tinha perdido mais tempo do que o costume a preparar o jantar. Tinha-se esmerado. Não sabia bem porquê, não era para agradar ao marido, que estava na sala, a ver televisão, filmes atrás de séries, atrás de documentários… Estava amuado com qualquer coisa, mas Júlia já não se lembrava bem porquê, tinha-se tornado demasiado frequente. Lembrava-se, por isso, que não se tinha esmerado para agradar ao marido, também não havia visitas, nem nenhum acontecimento especial. Tinha-se esmerado porque lhe tinha dado prazer misturar ingredientes, inventar, mexer o tacho vagarosamente, perder-se nos aromas e nos sabores. Finalmente, a mesa estava posta e a travessa na mesa. Chamou o marido. Recebeu uma resp

O Colecionador

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Lá no bairro, todos o conheciam por Januário das Caras. Desde miúdo que lhe sabiam do gosto por colecionar caras de pessoas. Começou pelos retratos da família, que pedinchava a todos, e pelas sobras dos retratos da máquina de Photomaton, que estava instalada na Papelaria do Sr. Luis. Achavam-lhe graça, comentavam as imagens que ele juntava num pequeno álbum, de folhas negras: “Olha, é a tia Micas, ainda antes de casar!” ou “Esta não é aquela senhora que vive ali na rua de baixo?” E piscavam-lhe o olho, cúmplices. Com a idade, o gosto foi-se acentuando. Fotografava toda a gente, família e amigos, vizinhos e gente que passava na rua. Considerava-se um colecionador de rostos e nada lhe dava mais prazer do que sentar-se na mesa da sala, a folhear os seus inúmeros álbuns, a observar as caras, as mudanças na expressão, a imaginar as histórias por trás de cada ruga, de cada olhar angustiado, de cada sorriso malicioso. Às vezes, punha-se a mudar a forma de catalogação dos seus rostos, só p

Do ramo mais alto da árvore

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Como fazia todas as manhãs, Pongo saltou para a árvore e trepou até ao ramo mais alto. Acomodou-se, esticou as patas, lambeu o dorso. Gostava daquele poleiro, um miradouro privilegiado sobre a quinta, de onde via tudo sem ninguém dar por ele. Não que lhe prestassem muita atenção quando andava lá por baixo: um gatarrão cinzento, de meia idade, sem muita paciência para as brincadeiras dos mais novos, não era uma companhia muito solicitada! Assim, acomodava-se ali em cima e observava tudo. Via as brigas dos cães e o alarido que faziam quando passava uma bicicleta pelo portão da quinta. Via os melros que depenicavam as sementes e os botões dos malmequeres. Ria-se com as manobras das lagartixas, que se escondiam atrás dos vasos de flores. Apreciava as brincadeiras dos gatitos mais pequenos, que por ali brincavam. Sim, porque havia sempre gatinhos pequenos na quinta. Uns desapareciam, outros cresciam e tornavam-se gatarrões como ele. Pongo gostava de observar as suas brincadeiras. Achava

Carminda

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Não tinha nada que jogasse a seu favor. Era velha, preta e gorda. E cada um destes adjectivos tinha uma carga negativa colada, era um rótulo recheado de preconceitos e ideias feitas. No entanto, Carminda era muito mais do que isso. Carminda, ou Minda, como lhe tinham chamado durante tanto tempo, tinha uma história de vida, sentimentos e emoções. Tinha uma família que não lhe ligava tanto como ela desejava, tinha um senhorio que lhe vinha pedir pontualmente o dinheirinho da renda, tinha duas vizinhas com quem trocava umas conversas sobre as doenças e o estado do tempo. Tinha recordações de tempos mais felizes. Também tinha pouco dinheiro, que gastava na mercearia, na farmácia e com o doidivanas do neto mais velho, que volta e meia lá ía a casa e que a conquistava com as gargalhadas súbitas que deixava espalhadas pela casa. Carminda arrastava os pés pela rua, na direcção da paragem do autocarro. Carregava apenas o saco que tinha ido encher à Instituição onde recebia o almoço diário, que

Quando eu for grande...

Muitos dias, quando venho da escola, gosto de fazer um desvio do caminho habitual e parar aqui, no pontão, à beira-rio. Sento-me com as pernas penduradas no vazio, a olhar para a imensidão do rio, que se confunde com a imensidão do céu. Gosto de baloiçar as pernas, para a frente e para trás, como se embalasse os meus pensamentos, enquanto sigo o voo das gaivotas. Às vezes, penso em qualquer coisa que se passou na escola, nesse dia. Ontem, por exemplo, só conseguia pensar na professora de Matemática que insistia para que eu resolvesse um problema que estava no quadro. Mas eu não conseguia, quando vou ao quadro fico nervoso e parece que as letras e os números se misturam numa dança sem sentido. E a professora insistia: "Então? Este problema é tão fácil! Os teus colegas já resolveram!" E os meus colegas riam-se, E o parvo do João, que às vezes até parece meu amigo, dizia baixinho: "Ele é burro!" Mas eu ouvia-o e só pensava no olhar triste da minha mãe quando eu levava