Do ramo mais alto da árvore
Como fazia todas as
manhãs, Pongo saltou para a árvore e trepou até ao ramo mais alto. Acomodou-se,
esticou as patas, lambeu o dorso. Gostava daquele poleiro, um miradouro
privilegiado sobre a quinta, de onde via tudo sem ninguém dar por ele. Não que
lhe prestassem muita atenção quando andava lá por baixo: um gatarrão cinzento,
de meia idade, sem muita paciência para as brincadeiras dos mais novos, não era
uma companhia muito solicitada! Assim, acomodava-se ali em cima e observava
tudo.
Via as brigas dos cães e o
alarido que faziam quando passava uma bicicleta pelo portão da quinta. Via os
melros que depenicavam as sementes e os botões dos malmequeres. Ria-se com as
manobras das lagartixas, que se escondiam atrás dos vasos de flores. Apreciava
as brincadeiras dos gatitos mais pequenos, que por ali brincavam. Sim, porque
havia sempre gatinhos pequenos na quinta. Uns desapareciam, outros cresciam e
tornavam-se gatarrões como ele. Pongo gostava de observar as suas brincadeiras.
Achava-lhes graça, embora já não tivesse paciência nem energia para andar a
correr com eles atrás das borboletas. Havia uma gatita de quem ele gostava mais
do que de qualquer outro: a Bia. Lembrava-se do seu nascimento, numa tarde
chuvosa. A mãe tinha ido para um recanto abrigado do telhado e aí tinham
nascido, a Bia e um irmão que não sobrevivera a uma queda do telhado
escorregadio. Bia era mais prudente e só de lá descera em segurança, com a mãe.
Além de prudente, era linda, com manchas de três cores, brancas, cor de laranja
e castanhas escuras. E Pongo embevecia-se a vê-la descobrir o mundo, lá em
baixo.
Pongo deu por si a sonhar.
Imaginava que corria com Bia pela quinta, a subir às árvores e a saltitar pelo
prado. Ele havia de lhe ensinar tantas coisas! Podia ensiná-la a apanhar moscas
com a pata, ele era um especialista. Ou mesmo iniciá-la naqueles miados
tremidos, que pareciam trinados, e que tinham significados muito especiais! E
passavam-lhe pela cabeçorra cinzenta muitas outras coisas, enquanto a via
correr e brincar. Um dia, também havia de correr com ela atrás das borboletas,
por cima dos muros da quinta. Haviam de se divertir tanto, até ficarem cansados
e adormecerem, enroscados um no outro. Imaginava-lhe o pelo luminoso, com as
manchas da cor do sol, protegido pelo seu grande corpo cinzento. E dormitava
feliz, embalado pelo seu sonho.
Mas Bia nem dava pela
presença de Pongo. Cresceu, na companhia dos outros gatos e, quando chegou a
altura de arranjar um companheiro, a sua escolha natural foi o Sebas, com quem
tinha partilhado tantas brincadeiras e caçadas! E o Pongo ficou lá em cima, no
ramo mais alto da árvore, de coração apertado, a vê-la namorar e constituir
família.
Os sonhos não vencem
batalhas, pensava Pongo imerso na sua tristeza. Tinha perdido uma guerra, sem sequer
ter travado uma batalha.
(Fotografia retirada do Google Images - Possível imagem do Pongo)
Que estória enternecedora!
ResponderEliminarFez-me lembrar Miguel Torga nos seus "Bichos"!
Abraço
Rosa, gosto de escrever fábulas, e pôr os animais a encenarem os nossos próprios sentimentos e atitudes.
EliminarBjs
Historiazinha linda! E ainda por cima com gatos, que eu adoro! Tive uma gata como o da imagem. Linda e paciente. Viveu 15 anos. Chamava-se Júlia e toda a gente a conhecia que eu falava dela quase como das filhas. Tive de a mandar abater há uns quatro anos. O que eu chorei!
ResponderEliminarBeijinhos felinos.
Não sei porquê, gosto de fazer histórias com gatos. A protagonista da próxima pode chamar-se Júlia! :)
EliminarBjs
Eu adoro as tuas histórias; e se metem gatos, como é o caso, ainda mais.
ResponderEliminarObrigada João.
EliminarE as minhas histórias metem muitas vezes gatos e cães...
Adorei o teu texto! Pobre Pongo... ;)
ResponderEliminarBeijocas!
O Pongo esqueceu-se que tinha de construir o futuro e não ficar à espera que ele acontecesse por si. Acontece muito!
EliminarIt happens!
Bjs
Um texto/conto muito bem escrito, talvez pela sua clareza e simplicitude e por não teres sucumbido à tentação de usar palavras rebuscadas. Quanto mais leio e escrevo, melhor entendo que a clareza das ideias e um bom fio condutor, mais do que o uso abusivo e despropositado de "palavras caras", cativam quem nos lê. Ainda tenho muito para aprender, mas é lendo que escreve com qualidade que se aprende. Como em tudo na vida, devemos aprender com os melhores. Ou há outra forma?
ResponderEliminarObrigada. E partilho das suas ideias. Quem escreve com palavras muito rebuscadas, só escreve para si próprio. E, às vezes, isso lhe chega. Mas eu acredito na simplicidade e na expressão genuína dos sentimentos. É a minha maneira. E há outras formas, sim.
EliminarBjs
Adoro felinos, adoro!
ResponderEliminarE me lembrei de Torga.
Uma boa semana
São
EliminarSeja benvinda a este espaço de partilha de ideias e palavras.
Boa semana. Bjs
É incrivél como estes amigos nos inspiram! uma histórinha que bem podia ser real, apetece-me até dar uns conselhos ao Pongo...
ResponderEliminarBjs
E inspiram mesmo. Gatos, cães e tartarugas...
EliminarO problema é que, tal como com os seres humanos, os conselhos valem muito pouco, temos de descobrir os segredos sozinhos.
Bjs
Está tão bonito o texto! Lindo mesmo! A minha irmãzita haveria de gostar bastante :)
ResponderEliminarUma história de gatos que guardei sempre comigo foi "O gato malhado e a andorinha sinhá", e também me recordo de um poema que começava assim:
"É branca a gata gatinha,
é branca como a farinha,
é preto o gato gatão
é preto como o carvão..."
:) Eu tenho tão presentes na memória coisas que li na escola primária é incrível... Consigo citar uma série de poemas de cor, que curioso.
Talvez me aventure a escrever algo sobre a Licas um dia destes, mas corro o risco de escrever uma fábula de terror a relatar os assassinatos brutais de passarinhos e lagartinhas :(
À conta disso agora a Licas só vê o sol... Pela janela.
Obrigada Catarina, lê o texto à tua irmãzita para ver se ela gosta! Eu gosto muito de escrever sobre animais, isto é, utilizando-os como personagens, como pretextos...
EliminarSabes que eu costumava dizer esse poema aos meus filhos? E até me serviu de inspiração: http://oculosdomundo.blogspot.pt/2009/11/o-preto-e-branca.html
Vai a esse link e depois diz-me o que achaste!
Beijinhos para a tua irmãzita. :)
A visão... as alturas... o ramo mais alto da árvore inebriou o felino... boa fábula... muito nos ensina. Obrigado.
ResponderEliminarÀs vezes, as alturas fazem-nos perder a noção da realidade!
EliminarBjs