Quando eu for grande...

Muitos dias, quando venho da escola, gosto de fazer um desvio do caminho habitual e parar aqui, no pontão, à beira-rio. Sento-me com as pernas penduradas no vazio, a olhar para a imensidão do rio, que se confunde com a imensidão do céu. Gosto de baloiçar as pernas, para a frente e para trás, como se embalasse os meus pensamentos, enquanto sigo o voo das gaivotas. Às vezes, penso em qualquer coisa que se passou na escola, nesse dia. Ontem, por exemplo, só conseguia pensar na professora de Matemática que insistia para que eu resolvesse um problema que estava no quadro. Mas eu não conseguia, quando vou ao quadro fico nervoso e parece que as letras e os números se misturam numa dança sem sentido. E a professora insistia: "Então? Este problema é tão fácil! Os teus colegas já resolveram!" E os meus colegas riam-se, E o parvo do João, que às vezes até parece meu amigo, dizia baixinho: "Ele é burro!" Mas eu ouvia-o e só pensava no olhar triste da minha mãe quando eu levava más notas para casa. Também via o olhar do meu pai, mas esse não era triste, era mais maldoso, especialmente quando pegava no cinto para me bater. Quando eu for grande, hei-de ter muitos filhos, mas não lhes vou bater com o cinto, vou jogar à bola com eles e andar de bicicleta, como faz o pai do João. 
É o que eu mais gosto de fazer, aqui sentado de pernas penduradas, a olhar o céu e o rio e as gaivotas: sonhar com o que vou fazer quando for grande!
Se calhar, vou ser marinheiro, sair num barco, a puxar as cordas e a ouvir os gritos dos pássaros. Ou talvez bombeiro, gostava de apagar fogos, transportar pessoas para o hospital. Então, havia de ver o olhar orgulhoso da minha mãe, a compor-me a farda, a gabar-se ao pé das vizinhas "Porque quando a sirene tocou, ele foi o primeiro..."
Quando eu for grande, hei-de vir buscar a minha mãe, levá-la ao cabeleireiro, ao cinema. Vou ser mesmo grande, maior do que o meu pai, e ele vai perceber que não pode beber e gastar o dinheiro que a mãe põe de lado, e ainda bater-lhe quando ela protesta.
Quando eu for grande, vou sair daqui num carro de bombeiros, ou talvez num barco, rio abaixo, deixando atrás de mim um rasto de espuma branca.
Mas sei que, de vez em quando, vou voltar aqui ao pontão, sentar-me com as pernas penduradas, mesmo que elas sejam grandes e quase cheguem à água, e sonhar, sonhar sempre. Porque os meus sonhos vão apontar-me o caminho, mesmo quando eu já for grande.


Comentários

  1. Um texto lindo mas melancólico, um pouco triste, de sonhos desfeitos...
    Pelo menos foi assim que o interpretei.

    Beijinhos e bom fim de semana

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  2. É isso mesmo Teresa. São eles, os sonhos, que nos apontam o caminho, cheguem as nossas pernas ao mar ou fiquem elas penduradas a dois palmos da placa do cais.
    Por vezes, saem-nos caros, mas apontam-nos o caminho, sempre!
    Bjs

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  3. Senti tantas saudades de te ler, Teresa. Voltaste. Voltaste em grande. Amei o teu conto, a densidade psicológica do protagonista, a grandeza da mensagem, o coração limpo e terno da narradora. Lindo! Tudo!

    Beijos

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  4. Teresa

    É-me familiar este retalho de vida, contada por uma criança. Quase que o sei de cor, porque tantas vez o ouvi no silêncio dos olhos tristes protegidos apenas pelo sonho de ser grande e modificar o mundo.

    Doce, terno...
    Comovente…. como só as coisas que amansam e rasgam o coração conseguem ser.

    Beijinhos

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  5. Oh... que dlícia de texto. Sobretudo o seu final... Porque são os sonhos que nos movem na vida. Gd beijinho

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  6. Que lindo e emocionante...

    Ele, como nós, deve sonhar sempre e deixar as pernas penduradas pra ajudar a sonhar melhor...beijos,lindo fds!chica

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  7. TERESA

    Posso dizer que ADMIREI este teu QUANDO EU FÔR GRANDE ?

    Um beijo.

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  8. Querida amiga, quando somos pequenos queremos ser grandes, vamos ser heróis e guerreiros, nada vai nos impedir de alcançar nossos sonhos. Como seria bom se essa fantasia crescesse conosco e sempre se transformasse em realidade. Belo texto. Beijocas

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  9. Já tinha saudades destes textos magnificos.
    Que belo conto...

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  10. Teresa,

    Uma beleza de texto, uma presença sua que já tardava.
    Lembra-me o meu professor de Físico-Químicas, António Gedeão [Rómulo de Carvalho], quando atirou cá para fora, que o sonho comanda a vida (...) como bola colorida, entre as mãos de uma criança.

    Mais importante que sonhar com a vida, é viver os sonhos que ela nos oferece...

    Bjs
    César

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  11. César

    O sonho comanda a vida... Teve realmente o privilégio de ser aluno do António Gedeão?

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  12. Esta criança, edificada na perfeição, com este diagnóstico tão acertado ao seu quotidiano, apenas precisa que alguém, com absoluta descrição, o ajude a antecipar a chegada a«Quando eu for grande»
    Bom regresso, Teresa.
    Bjs

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  13. Teresa,

    Desculpe o meu atraso de regressar aqui, para responder:
    É verdade, o que digo no comentário. Para além de ter sido meu Professor no Liceu, acabámos por nos tornar amigos para sempre... até ao fim.

    O Dr. Rómulo de Carvalho - António Gedeão - para além de amigo, foi um grande conselheiro que me norteou muitas decisões.

    Passeámos muito, por Campo de Ourique, bairro de Lisboa, conversando lado a lado.
    Um dia, após o falecimento, dediquei-lhe uma postagem.

    Bjs
    César

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  14. Um dia estava assim... bem... quase... não tinha as pernas dependuradas, estava em pé e não estava à beira do rio, mas antes na margem de uma charca.
    Levantei os olhos aos céus para seguir o voo de duas aves, cuja silhueta vira reflectida na superfície quase imóvel da água da charca...
    Por segundos sonhei voar no trilho daquelas aves, desejei conhecer de perto aquelas criaturas...
    Apenas por segundos... quando baixei os olhos, sabe-se lá por que instinto, tinha perdido, irreversivelmente, o equilíbrio, e caí com grande espalhafato dentro de água...
    Aves e aviões estiveram sempre presentes na minha vida... jamais esqueci os km a pé, totalmente encharcado, de regresso a casa... o sonho pode comandar a vida, mas acordar intempestivamente, também tem efeitos interessantes.

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