Modesta homenagem a Saramago
Era um homem de convicções fortes e gostava de polémicas. Podiamos não estar de acordo com ele, podiamos achar que, por vezes, raiava os limites da inconveniência. Podiamos entrar no jogo e perder tempo a discutir pormenores das suas opiniões, sobre a Bíblia, ou a união de Portugal com Espanha, ou qualquer outro assunto. Ou podiamos simplesmente abrir um livro e deixarmo-nos conduzir pela sua escrita, original e inebriante. Eu sempre optei pela segunda opção. Amei a escrita de Saramago desde as suas primeiras obras, que conheci durante os anos 80: "Levantado do Chão", "O ano da morte de Ricardo Reis", "A história do Cerco de Lisboa", "As intermitências da morte", são livros que guardo no coração, e que gosto ainda de reler. Há quem goste e refira outros, mais conhecidos. Há quem fale bem ou mal, sem nunca lhe ter lido uma linha.
"Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta cor de violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, matida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o fósforo com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia. sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.
(José Saramago, As Intermitências da Morte)
Na sexta-feira, José Saramago morreu. Hoje, foi cremado, no meio das homenagens nacionais. Não perco tempo com questiúnculas menores, como por exemplo, quem deveria ou não estar presente no seu funeral. O que me interessa, é o que dele fica: uma obra ímpar, que nos orgulha a todos.
José Saramago era ateu, não acreditava no Céu ou no Inferno. Por isso, desejo apenas que as suas cinzas descansem em paz.
Paulo Salvador in: http://ilustramos.blogspot.com/2008/10
Fiquei muito feliz ao encontrar esse post. Vaguei por muitos blogs, pela imprensa portuguesa, sempre tentando entender porque não conseguiam separar os rompantes do homem, fálivel como qualquer um, e a genialidade do escritor.
ResponderEliminarFelizmente cheguei aqui e confesso: eu poderia ter escrito esse texto, porque é assim que me sinto em reação a ele.Reler suas obras sempre será um prazer.
Um abraço e parabéns pelo irretocável post.
Só os "happy few" percebiam Saramago. Ele foi a única criatura que pegou no "establishment", baralhou-o e deu de novo para que, quem entendesse, pudesse ter outros olhares.
ResponderEliminarBonita, a sua Homenagem!
Muito linda tua homenagem a esse grande homem que se foi...beijos,chica
ResponderEliminarSem qualquer dúvida, pela escrita!
ResponderEliminarGizelda
ResponderEliminarFico contente por estar em sintonia comigo. É preciso aprendermos a separar as coisas.
Bjs e volte sempre.
Mar de Bem
ResponderEliminarSem dúvida, ele conseguiu dar-nos olhares bem diferentes sobre as grandes questões da Humanidade.
Bjs
Chica
ResponderEliminarNão podia passar em claro. Saramago foi um grande escritor e poeta, ganhou um prémio Nobel. Merece a homenagem, quer se goste, quer não.
Bjs
MagyMay
ResponderEliminarPela escrita, pois claro, o resto é irrelevante :)
Bjs
Teresa,
ResponderEliminarSem dúvida um grande escritor, mas tb um motivo de orgulho para Portugal. Desculpa, a minha costela patriótica.
E, ao contrário de ti, reclamo a ausência das primeiras figuras da República na despedida ao Prémio Nobel. Quer se goste ou não, quer se esteja de acordo ou não, há que reconhecer. Ponto. Dever é dever. E patriotismo é patriotismo.
Ana
ResponderEliminarComo podes depreender do meu post, não entro nessa polémica, que me parece mais uma questiúncula mediática. E, se falarmos em patritismo, digamos apenas que Saramago não era o seu maior expoente. Por morrerem, as pessoas não se tornam santas, como parece acontecer demasiadas vezes neste pais.
Bjs
Olá, Teresa.
ResponderEliminarPenso que são destas homenagens, como por exemplo, a sua, que prestigiam a figura de Saramago.
Todos ficámos mais pobres, especialmente os Portugueses.
Bj
Maré Alta
ResponderEliminarConcordo, a cultura portuguesa ficou mais pobre.
Bjs
Querida Teresa, vai-se o poeta, fica sua obra imortalizada, linda homenagem a um homem tão importante na literatura portuguesa.Tenha uma linda semana...Beijocas
ResponderEliminarOlá,
ResponderEliminarComo bem sabes, os "intlectuais" da nossa praça, são muitas vezes arautos de questões de importância nula e vazia de conteúdos. A questã que interessa é se SARAMAGO é mesmo depois de fisicamente desaparecido um HOMEM da CULTURA não só PORTUGUÊS, mas MUNDIAL.
Eu tenho a certeza da segunda.
Gostei da tua Modesta homenagem a Saramago.
Bjs.
A minha familiar alemã está admiradíssima com a homenagem, que os portugueses estão a fazer ao Saramago.
ResponderEliminarEu não tenho opinião, só digo, que se a Merkel estivesse em férias não regressava, caso o Grass morresse, que o caixão dele não era coberto com a bandeira alemã e os jogagores alemães não punham luto durante o jogo.
Curioso, quando o ano passado estive cá no Porto, havia uma polémica terrível contra a Saramago, por causa do "Caim".
Uma pessoa só precisa de morrer para que os outros nos vejam com outros olhos!!!
Beijinhos da cidade mais bonita do mundo!
Teresa,
ResponderEliminarEu sou das que falam sem ter lido uma linha. Eu sou das que acha que as polémicas não adiantam, mas que também incomodam quem não perde tempo a falar delas. Eu sou das que homenageia o homem, a coragem e a frontalidade. Eu sou das que falam sem ter lido uma linha, mas sou igualmente das que condena quem as leu e não lhe soube dar valor.
Beijinho :)
Teresa
ResponderEliminarSaramago é eterno , pérpetuo em sua obra.
E é como o Júnior postou lá no Contatos, um ateu mais cristao que se teve notícia ... gostava de "causar " , destemido, um gênio das letras.
É mais um entre os portugueses que se destacaram e será sempre lembrado, um ogulho prá Portugal
E por falar em orgulho, viu lá o que fez os portugueses com os corenanos ? rs os deixaram " a pastar " tomara nao queiram repetir essa façanha com os brasileiros... :( covardia hem? o Brasil nao vai jogando muito bem , tem é sorte!
boa semana , abraços
Marilu
ResponderEliminarÉ como dizes, vai-se o poeta, fica a obra.
Bjs
Fernando
ResponderEliminarSaramago, quer se goste quer não, é um Prémio Nobel. A sua marca ficará na Cultura mundial, com toda a certeza.
Bjs
Ematejoca
ResponderEliminarTens toda a razão: em Portugal, basta morrer para se passar a ser excelente. O mesmo aconteceu com Saramago. Felizmente, a minha opinião foi sempre a mesma e é a que expresso neste post.
Já estás no Porto?
Bjs
Helga
ResponderEliminarSó há uma solução: ler urgentemente! Não comeces pelo Memorial do Convento, que é pesado. As Intermitências da Morte, por exemplo, ou A Viagem do Elefante, são bons para começar. Tenho a certeza que vais amar.
Bjs
Lis
ResponderEliminarDizes bem, Saramago é perpétuo na sua obra.
Eu acho que era giro Portugal e Brasil empatarem (para manter a emoção).
Bjs
Adorei a tua singela (?) homenagem a Saramago. Não foi singela, foi uma homenagem sentida e honesta. O teu texto está fabuloso e, claro, partilho plenamente das tuas ideias.
ResponderEliminarBeijos
JS deixou-nos um legado cultural valiosíssimo.
ResponderEliminarLouvo a sua frontalidade;
Discordo das opções ideológicas;
Li até ao fim e não concordei, nos termos, com
«A Jangada de Pedra»
«Ensaio Sobre a Lucidez»
Bjs
O "Memorial" é um livro pelo qual tenho um imenso carinho. Quanto mais o estudo, mais gosto dele. Blimunda e Baltazar imortalizam Saramago e o sonhador que nele havia. O "Ensaio sobre a Cegueira" é genial pela trama que leva os homens a chegarem ao mais baixo da condição humana.
ResponderEliminarO homem morreu, partiu. Mas o autor está por cá, connosco, com a humanidade, para todo o sempre. Até sempre, José Saramago!
Teresa, uma homenagem linda e mais do que justa. Foi uma grande perda. Gostei muito do texto. Esse eu ainda não conhecia. Beijão!
ResponderEliminarSem entrar em discussões de "gosto" ou "não gosto", de defender ou atacar quem foi ou devia ter ido, há um pequeno pormenor que acho no mínimo ridículo, pelo exagero: o luto dos jogadores da selecção nacional (nem tanto ao mar...)
ResponderEliminarQue descanse em paz.
Natália
ResponderEliminarFoi uma homenagem sentida, nada mais. Já não posso com polémicas que nos desviam do essencial.
Bjs
JPD
ResponderEliminarMesmo discordando das suas opções ideológicas (em que também não me revejo), tenho a certeza de que houve livros que o tocaram, cativaram, ou fizeram reflectir.
Bjs
Maggie
ResponderEliminarConcordo com tudo o que dizes, só não falei desses dois livros por serem, de qualquer forma, os mais conhecidos. Baltazar e Blimunda serão personagens eternas da literatura universal.
Bjs
Pinguim
ResponderEliminarJá sabes que os portugueses, nestas coisas da morte, são uns exagerados :)
(Aposto que a maioria dos jogadores nunca leram uma linha escrita por Saramago!)
Bjs
Não é modesta a sua homenagem, acho que Saramago a apreciaria.
ResponderEliminarUm abraço
Fê
Olá Teresa!
ResponderEliminarApesar de não apreciar Saramago enquanto pessoa,ainda estou em dúvida para com a sua escrita.Indubitavelmente,marcou o Mundo.Quando penso em Saramago,penso na frase seguinte:"Falem bem ou mal de mim,mas falem".Daí,mesmo sendo ateu,será sempre eterno.
Quanto a maioria dos jogadores nunca terem lido uma linha escrita por Saramago,olha que às tantas ainda nos surpreendem como fizeram ontem...:)
Jocas gordas
Lena
P.S.:Convite: participe na Blogagem de Julho do blog aldeiadaminhavida. O tema é: “A Fruta da minha Região”. Vale tudo: texto, foto, imagens, vídeos, receitas, cartazes… dê asas à sua imaginação, enviando a sua participação para aminhaldeia@sapo.pt até dia 8 (de preferência). Esta semana, sairá 1 post com mais informação.
Muito se falou, muito se fala e muito se falará ainda sobre este grande Homem, sobre este grande Escritor. Falar-se-à bem, ou mal, mas sobre ele e sua obra não haverá silêncio. Virão os "críticos literários" apontar ao conjunto de sua obra um defeito aqui, outro ali (ah, inveja maldita!); outros desfazer-se-ão em elogios. Eu calo-me porque, como quem bem disse, Saramago levou consigo todas as palavras ... e para mim só sobraram estas:
ResponderEliminarPor causa de Saramago ainda me orgulho muito mais de ter como minha língua-mãe o Português.
Não consigo prestar-lhe qq homenagem. Não consigo ler qq livro. É era um homem mau... Mas é apenas a minha opinião.
ResponderEliminarSem entrar em polémicas e atendendo ao género de Saramago, pergunto se: será que Saramago queria um Funeral, para si assim?
ResponderEliminarFê
ResponderEliminarObrigada. Bjs
Helena
ResponderEliminarQuanto aos nossos jogadores, acho que não precisamos temer surpresas dessas :)
Bjs
Anónimo
ResponderEliminarFalou bem, porque não assina o que escreve?
Expressodalinha
ResponderEliminarTodos temos direito à nossa opinião :)
Bjs
Samnio
ResponderEliminarQuem sabe o que Saramago quereria? Talvez menos hipocrisia nas conversas laudatórias a seu respeito.
Bjs