Carminda
Não tinha nada que jogasse a seu favor. Era velha, preta e gorda. E cada um destes adjectivos tinha uma carga negativa colada, era um rótulo recheado de preconceitos e ideias feitas. No entanto, Carminda era muito mais do que isso. Carminda, ou Minda, como lhe tinham chamado durante tanto tempo, tinha uma história de vida, sentimentos e emoções. Tinha uma família que não lhe ligava tanto como ela desejava, tinha um senhorio que lhe vinha pedir pontualmente o dinheirinho da renda, tinha duas vizinhas com quem trocava umas conversas sobre as doenças e o estado do tempo. Tinha recordações de tempos mais felizes. Também tinha pouco dinheiro, que gastava na mercearia, na farmácia e com o doidivanas do neto mais velho, que volta e meia lá ía a casa e que a conquistava com as gargalhadas súbitas que deixava espalhadas pela casa.
Carminda arrastava os pés pela rua, na direcção da paragem do autocarro. Carregava apenas o saco que tinha ido encher à Instituição onde recebia o almoço diário, que lhe dava para o dia inteiro. Passava por pares de namorados, grupos de jovens sorridentes e ruidosos, famílias atarefadas. Gostaria de se sentar, mas era como se ninguém a visse, ninguém lhe cedia um lugar no banco de espera. Sentia-se transparente. Um rapaz levantou-se e atravessou a rua a correr, numa súbita urgência, e Carminda aproveitou para se sentar, com um suspiro. A senhora que estava sentada ao lado mudou a carteira de sítio, com um olhar desconfiado. Carminda encolheu-se, como que a pedir desculpa por ali estar.
O autocarro chegou e todos se chegaram à frente. Um miúdo mais apressado empurrou-a e logo um amigo o puxou para trás: “Cuidado com a velha, pá!” Carminda fingiu que não tinha ouvido nada e avançou pelo corredor do autocarro, com o seu passo cansado, novamente à procura de um lugar. Não sabiam nada sobre ela; só conheciam os seus rótulos.
(Este texto foi construído para o desafio de Janeiro da Fábrica de Letras,
com o tema "Preconceito")
Tua participação foi muito linda.Teresa! Um beijo,feliz 2011!chica
ResponderEliminarMuito bem retratada essa tendência que, infelizmente, muitos seres humanos têm para a indiferença ou para fazer juízos apressados e impensados.
ResponderEliminarE os preconceitos não são sempre assim? Rotulam-se as pessoas pelo que são aparentemente sem as conhecerem verdadeiramente...
ResponderEliminarBeijocas e bom ano para ti!
ps - gostei da nova foto de perfil, eheheh! :)
Teté
ResponderEliminarPois, foste tu que me tiraste a fotografia!
Bjs
Preconceitos, não é...?
ResponderEliminarPor vezes é pior que ter sarna, lepra ou uma dessas coisas misteriosas por descobrir a cura.
Há o medo da transmissão através do contacto, nem que seja visual ou auditivo. Portanto o melhor mm é fingir q não exitem, q não os vemos...
Ai, estou a começar 2011 mt amarga!
Olha, gostei da mudança de visual, aliás já a tinha reclamado, mas gosto mais da do face.
Bjs
Um texto muito bonito que nos faz pensar naqueles pequenos gestos de negligência que doem tão fundo naqueles que os sofrem....
ResponderEliminarBeijinho!
E o menos preconceituoso ainda foi o que disse para ter cuidado com a velha!
ResponderEliminarO pior preconceito ainda é o que nos torna invisíveis. Muito bom o teu texto.
ResponderEliminarParabéns por este seu excelente e tocante texto. Muito real infelizmente. Uma participação a merecer o meu aplauso.
ResponderEliminarbeijinhos
Gostei muito!
ResponderEliminarMelhoras rápidas.
xx
"(...)novamente à procura de um lugar(...)" É o que a maioria das pessoas descriminadas fazem... toda a vida.
ResponderEliminarEstá genial este teu texto!
Parabéns,
Beijinhos*
História tão triste como real: quantas "Mindas" não sofrerão, como a tua, todos os dias?
ResponderEliminarComo sempre, a tua história está carregada de sensibilidade e escrita de uma forma tão simples como bela, sem uma palavra a menos, sem uma palavra a mais.
ResponderEliminarBrilhante.
Os rótulos fazem parte da nossa sociedade. É uma realidade muito triste.
ResponderEliminarInfelizmente o mundo está repleto de pessoas invisíveis tal a protagonista da sua belíssima história...
ResponderEliminarFelizmente a sensibilidade é um colírio que a cada vez mais alcança novos olhos...
Parabéns pelo blog, pela participação e claro, pela sensibilidade demonstrada de forma estupenda!
Abraços renovados!